domingo, 20 de março de 2011

UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: SOLUÇÃO OU ARMADILHA

Gustavo Ioschpe
Universalização da educação infantil: solução ou armadilha?
"Os ganhos para o país com a eliminação do analfabetismo serão muito
maiores do que aqueles oriundos da universalização da pré-escola. Essa é a
batalha que temos à nossa frente. Admitir distrações é quase um crime"
Gustavo Ioschpe

Mila Saastamoinen/Getty Images
Pré-escola da Suécia - Pré-escola da Suécia

Pré-escola da Suécia
Lá funciona porque todos os outros problemas educacionais foram resolvidos
também



Os últimos anos têm visto o florescimento de uma vasta literatura
científica, multidisciplinar, que demonstra o incrível poder que os
primeiros anos de vida de uma pessoa têm na determinação de uma série de
fatores — da saúde à riqueza — de sua idade adulta. À medida que a
pesquisa avança, nota-se que a idade para o surgimento de características
importantes vai retrocedendo: sabe-se hoje que eventos da vida
intrauterina têm impactos que perduram até a morte.

Esse avanço do conhecimento vem embasando uma mudança de políticas
públicas, especialmente nos países desenvolvidos, no sentido de intervir
cada vez mais cedo, com especial atenção às crianças de famílias mais
vulneráveis. O primeiro esforço em muitos países tem sido começar o
processo educacional já na pré-escola, atendendo crianças de 4 e 5 anos. O
impacto positivo da pré-escola é amparado por literatura científica
extensa. Estudos feitos no Brasil demonstram que alunos que cursaram a
pré-escola têm desempenho acadêmico melhor do que aqueles que não a
cursaram. Essa diferença persiste por todas as séries, e aparece também em
exames padronizados como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Alunos que têm melhor desempenho tendem a gostar mais da escola e,
portanto, são menos propensos a abandoná-la. Alunos que cursaram a
pré-escola têm maior probabilidade de completar o ensino superior. O
impacto positivo vai além da vida escolar e se estende à idade adulta. Um
estudo feito no Brasil mostra que aqueles que passaram pela pré-escola têm
salário 16% mais alto do que alunos que não a cursaram. Estudos americanos
demonstram que a frequência à pré-escola aparece associada à diminuição
das taxas de criminalidade.

Por todos esses benefícios, vários países, entre eles o Brasil, vêm
cursando o caminho da universalização da educação infantil, especialmente
na idade da pré-escola — antes dela vem a creche, cujos efeitos
educacionais aparentam ser nulos. O Brasil avançou bastante nesse terreno.
Aproximadamente 78% das crianças brasileiras estavam na pré-escola em
2009. Usando o critério da Unesco, que permite fazer comparações
internacionais, tínhamos 65% de taxa de matrícula, número elevado,
comparável ao de vários países líderes em educação.

Há, porém, uma diferença fundamental entre o esforço de universalização da
educação infantil no Brasil e nos países desenvolvidos, onde esse
movimento se deu depois de satisfeitas todas as necessidades basilares de
sua educação escolar. No Brasil ele está sendo usado (e vendido à opinião
pública) como a bala mágica para todas as deficiências do sistema
educacional, em especial as relacionadas à alfabetização.

A experiência internacional demonstra claramente a falácia desse
argumento. Nenhum dos países que deram saltos educacionais importantes nas
últimas décadas teve a universalização da pré-escola como conquista
anterior a êxitos na alfabetização e no ensino de modo geral. Em 1975, por
exemplo, a taxa de matrícula na pré-escola na Finlândia era de 32%, na
Noruega, de 13%, na Coreia do Sul, de 3%, e na Inglaterra, de 21%. Mesmo
em 1980, quando muitos desses países já começavam a dar importantes sinais
da melhoria de sua educação, nenhum deles punha nem metade da população na
pré-escola. Na Finlândia, até há pouco o país com o melhor sistema
educacional do mundo, a taxa de matrícula na pré-escola ainda em 1990 era
de 33%. Vem da China o exemplo mais claro de que a pré-escola é útil, mas
não chega a ser condição indispensável de sucesso para o funcionamento do
sistema educacional como um todo. Em 2008, a taxa de matrícula de crianças
chinesas na pré-escola era de 44%. Um ano depois, a China já liderava
mundialmente o exame Pisa, que mede o conhecimento dos jovens aos 15 anos,
sem tempo hábil, portanto, para que se verificasse algum benefício da
pré-escola nesse fenomenal desempenho.

A expansão da pré-escola vem ganhando força no Brasil também porque os
políticos gostam de inaugurar escolas e anunciar a criação de vagas. “Mas,
se os efeitos da pré-escola são positivos, que mal há nisso?” O argumento
é bom, mas pode ser ruinoso se expandir a pré-escola significar deixar de
lado as lutas pela melhoria do ensino fundamental. A realidade mostra que
existe esse risco. Em qualquer organização da iniciativa privada, por
exemplo, há sempre dezenas de projetos com retorno positivo que podem ser
perseguidos, mas as organizações exitosas implementam apenas um número
muito pequeno dessas oportunidades. As escolhas precisam ser feitas, por
uma questão de estratégia e foco. Nem sempre há tempo e/ou recursos
humanos suficientes para fazer tudo — e tudo benfeito. É preciso, então,
priorizar aquilo que é mais importante e dá maior retorno. As organizações
públicas e educacionais têm as mesmas limitações que qualquer organização
humana, mas, no Brasil, acham que podem (e devem) fazer tudo ao mesmo
tempo, e que conseguirão fazer tudo bem. É um engano.

Precisamos fugir da armadilha da expansão do ensino para o nível infantil
por duas razões. A primeira é conceitual: há mais de dez anos, com a
universalização do acesso ao ensino fundamental, nosso problema maior
deixou de ser a quantidade (matrículas, vagas ou falta de verbas) para se
tornar a qualidade da educação, que se traduz em melhoria da aprendizagem.
Mas as reformas que produzem qualidade requerem esforços, brigas com as
corporações do ensino, interferência nas universidades, fim do loteamento
político de cargos. Enfim, uma série de medidas que são tão importantes
para o povo brasileiro quanto desagradáveis para nossos políticos e muitos
professores e funcionários escolares incompetentes. Por isso, não
conseguimos ainda, como país, fazer essa migração e focar na qualidade.
Assim, continuamos aparecendo nas últimas posições de vários indicadores
globais de educação. Já há relativamente pouco que se possa fazer,
quantitativamente, pelo ensino fundamental. Se, como sociedade,
conseguirmos fazer com que nossos líderes se atenham a esse nível e não
escapem das batalhas que importam, teremos verdadeiros e importantes
avanços. Se, porém, perdermos o foco e deixarmos que as atenções se voltem
para a tenra infância (hoje os de 5 anos, daqui a pouco os de 3...),
perderemos mais dez ou quinze anos até finalmente descobrirmos que, ops!,
apesar de todos os progressos na pré-escola, nossos alunos continuam
chegando à 4ª série sem saber ler nem escrever.

A segunda razão é objetiva. Temos uma enorme e urgente batalha a travar,
quase vergonhosa: precisamos alfabetizar 100% de nossas crianças até a 2ª
série. Essa precisa ser uma obsessão, pois sem essas fundações sólidas não
há como erguer o edifício do conhecimento. O que a experiência
internacional mostra é ser perfeitamente viável — aliás, é o normal —
alfabetizar crianças que não passaram pela pré-escola, já na 1ª série. Os
ganhos para o país com a eliminação do analfabetismo serão muito maiores
do que aqueles oriundos da universalização da pré-escola. Essa é a batalha
que temos à nossa frente. Admitir distrações é quase cometer crime de
guerra.

P.S. — Faltou citar, no artigo do mês passado, uma área importante na qual
os pais podem ajudar o desempenho escolar de seu filho, que é o
aleitamento materno. Um estudo com alunos de 10 anos de idade que acaba de
ser divulgado na Austrália mostra que aqueles que tiveram aleitamento
materno por seis ou mais meses apresentavam desempenho acadêmico superior

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